A construção social do mercado de previdência privada e a  redefinição de cidadania

 

Maria Aparecida Chaves Jardim[1]

Resumo

 

Trata-se de um artigo que tem por objeto de reflexão o conceito de cidadania, enfocado a partir de análise da construção do mercado de previdência privada. O argumento sugerido por esse trabalho, é que com a criação do mercado previdenciário, o conceito de cidadania passa por redefinições e ganha novas significações. Nesse contexto, a imprensa tem papel fundamental. Divulgando a falência da  previdência social e a previdência privada como alternativa `a segurança até então fornecida pelo Estado, a imprensa redefine valores e resignifica  o conceito de cidadania, que passa a simbolizar o consumo de previdência privada.

Recebe inspiração teórica dos trabalhos de Marshall e Bourdieu nas discussões sobre cidadania e poder da imprensa, respectivamente. Tem como fonte empírica a coleta de dados em revistas de grande circulação durante os anos de 1970 e de 1996 a 2002.   

 

Palavras-chave: cidadania, previdência, imprensa, poder, mercado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Apresentação

A década de 90 foi marcada pelo retorno ao debate da crise da previdência oficial e sua necessária reforma. Esse debate foi introduzido pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso no ano de 1994, que, juntamente com o Congresso Nacional, propôs um conjunto de medidas visando reduzir o  tão propagado déficit previdenciário.

O debate ganhou repercussão no Congresso Nacional, no Parlamento, nas universidades, nos sindicatos e até na sociedade civil, que afetada diretamente pelas reformas, trouxe para seu cotidiano as preocupações desencadeadas pela mesma. Algumas das mudanças propostas, e inclusive aquelas aprovadas, afetam diretamente a população, tais como: idade mínima para aposentadoria, regulamentação da previdência complementar e criação de incentivos visando o fomento do mercado de previdência privada.

Nesse debate, a imprensa ocupa papel fundamental. Debatendo a crise e reforma da previdência social, a imprensa cria a descrença na sua capacidade em responder aos desejos de segurança dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que divulga e legitima o mercado de previdência privada como alternativa à segurança até então oferecida pelo Estado. Nesse contexto, o conceito de cidadania é redefinido e resignificado. Ganha uma versão moderna. Cidadania passa a ser a expressão do consumo de planos de previdência privada.

Tendo em vista o contexto de passagem da previdência  social para  privada, esse trabalho busca discutir o conceito de cidadania, a partir de mudanças acontecidas no sistema previdenciário brasileiro, as quais se relacionam diretamente com a o conceito de cidadania. Nesse sentido, esse artigo - resultado de reflexões desenvolvidas durante o  mestrado e de questões sugeridas pela pesquisa de doutorado - busca fornecer elementos para se pensar as mudanças pelas quais passam o sistema previdenciário, a partir do  conceito de cidadania.

Tem como fonte empírica a coleta de dados em revistas de grande circulação durante os anos de 1970 e de 1996 a 2002.

 

 

 

 

 

1 Desenvolvimento histórico do conceito de Cidadania

 

Na reflexão sobre o conceito “cidadania” nos inspiramos no trabalho de Marshall, cujo autor analisou o desenvolvimento do conceito de cidadania na Inglaterra. Marshall subdivide o conceito de cidadania em três elementos: civil, político e social. Ou seja,

 

o direito civil é composto por direitos necessários à liberdade individual como aquele necessário a liberdade – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito a justiça (. . ). Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político (....). O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por exemplo, na herança social e levar  a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade (...). (Marshall, ANO: 63/4)

 

O direito civil surgiram no século XVIII, englobando a liberdade individual, liberdade de expressão, o direito de propriedade e o direito a justiça; os direitos políticos surgiram no século XIX e incluíam o direito ao voto e o acesso aos cargos públicos; os direitos sociais apareceram no século XX, incluindo desde o direito a um mínimo de bem-estar, até o direito a uma vida civilizada.      

Acrescenta ainda, que, no início, esses três elementos – civil, político e social - estavam fundidos em um só. Isso se deu porque as instituições que abarcavam esses direitos, tribunais de justiça, parlamento, Estado e escola, respectivamente, estavam entrelaçadas entre si. 

            Numa análise crítica sobre a cidadania, Marshall observa que com o seu desenvolvimento histórico, a cidadania provocou grande impacto sobre a desigualdade social, da mesma forma que a legitimou. Em alguns casos, a cidadania se tornou o elemento criador da desigualdade social. Segundo Marschall, os direitos dados aos indivíduos, não entravam em conflito com a desigualdade da sociedade capitalista, eram ao contrário, necessária para manutenção da desigualdade social. Ou seja, a igualdade implícita no conceito de cidadania está limitada em conteúdo. Assim,  o direito à “liberdade de palavra possui pouca substância se, devido à falta de educação, não se tem nada a dizer que vale a pena ser dito, e nenhum meio de fazer ouvir  se há algo a dizer” (80).

Nesse sentido, a cidadania ao contrário de propiciar participação e inclusão social, a cidadania opera como instrumento de estratificação social, principalmente através da educação. Essa, considerada a princípio como o direito a igualdade de oportunidade, na prática reproduz as desigualdades sociais (Bourdieu, 1979). “A oportunidade se torna ainda mais desigual, quando, as possibilidades de uma educação mais avançada já se restringe a poucos felizardos. Alguns destes, após serem testados uma vez mais, prosseguirão em seus estudos”. (102). O status adquirido por meio da educação, acompanha o indivíduo por toda a vida, legitimando e reproduzindo a desigualdade social.

Marshall (    ), concluí, que, toda a desigualdade existente é resultado, sobretudo, dos direitos sociais existentes, que não possuíam expressão efetiva.    

Dentro do processo da criação de direitos sociais, o autor analisa as conseqüências da Poor Law, de 1834. Essa lei, prestava assistência somente aos miseráveis e inválidos, que para serem atendidos, deveriam abrir mão da condição de cidadão. Ou seja, direitos sociais mínimos foram desligados do status de cidadania, já que a Poor Law não tratava as reivindicações dos pobres como uma parte integrante dos seus direitos, porém como reivindicações que seriam atendidas somente se deixassem de ser cidadãos.

Nesse sentido, a Poor Law obrigava, de fato, os indivíduos assistidos pelo Estado, a abrir mão dos seus direitos políticos; Na prática, abriam mão, ainda, dos direitos civil de liberdade, pois passavam todo o tempo internados nas casas de trabalho. Quando os direitos sociais passam a ter características de assistencialismo, a “proteção” oferecida pelo Estado passa a ser associada ao negativa, criando, portanto, um estigma em torno das pessoas “beneficiadas” pela Poor Law..

 

“O estigma associado à assistência aos pobres exprimia a assistência aos pobres exprimia os sentimentos profundos de um povo que entendia que aqueles que a assistência deviam cruzar a estrada que separava a comunidade de cidadãos da companhia dos indigentes.”

 

No Brasil, a questão da cidadania adquiriu características específicas. Devido a forma como se deu o desenvolvimento histórico do país,  esteve sempre presentes acordos e negociações entre elite e sociedade civil, sendo que nessas, a elite se dispõe a perder o mínimo de privilégios em benefícios da sociedade, visando a manutenção da ordem vigente. Em momentos históricos como  a  Independência e a Proclamação da República, observamos a prevalecência de acordos, em detrimentos de enfrentamentos direitos. Nesse sentido, no  processo histórico do país não aconteceu de fato, uma ruptura com a elite e a ideologia dominante.

No processo de desenvolvimento histórico do país, o abolicionismo representou um momento importante na ruptura com o antigo regime. Contudo, a abolição do escravo não propiciou, de fato, o princípio de igualdade nas relações econômicas e sociais. Ao contrário, transportou a desigualdade para as cidades, permeando as relações sociais, econômicas, culturais e políticas e criando o estigma da pobreza e da marginalidade entre os negros e seus descendentes.

Com a “Revolução” de 30, assistimos a queda política das oligarquias até então dominantes, especialmente as Oligarquias de Minas Gerais e de São Paulo. Porém, os grupos políticos que ascenderam ao poder, deram o mesma tratamento a questão da cidadania, avançando pouco no que se refere a inclusão social. 

Sucessivamente, os demais grupos que ascenderão ao poder tiveram uma postura semelhante. Durante o Estado Novo tivemos a completa negação dos direitos sociais e durante a Ditadura Militar permaneceram os privilégios de uma minoria, bem como a exclusão social da maioria. Num contexto de desemprego, insegurança e exclusão observamos que os anos de 1970 ensejava o surgimento de  novos sujeitos políticos, através do processo de mobilização e participação. 

Nos anos 80, a cidadania assumiu um caráter distinto. Com acontecimentos históricos como “Diretas Já”, e o processo de reconstitucionalização do país entre outros, os direitos humanos, civis e políticos projetaram-se no cenário nacional, o que refletiu na Constituição de 1988.

Nos anos 90, observamos que, discursivamente, temos a consolidação da democracia e da cidadania; Contudo, o que temos na prática é mais de 70 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, 33 milhões de indigentes, grande número de analfabetos e de desempregados. Como conseqüência, convivemos com a violência, com a intolerância, com preconceitos e distintas  formas de exclusão social.    

No próximo item acompanharemos o conceito de cidadania. Analisando o sistema previdenciário brasileiro mostraremos como esse se constituiu historicamente  na perspectiva de fornecer proteção social aos trabalhadores e apontaremos as transformações pelas quais tem passado. Nesse contexto, a imprensa cumpre papel de reelaborar e resignificar o conceito de cidadania.

 

2 A Previdência social e Cidadania

            Nesse item, mostraremos o desenvolvimento histórico da previdência social, que culmina com a criação do mercado de previdência privada. Mostraremos que a previdência social surgiu numa perspectiva assistencialista, sempre voltada às classes populares; que durante todo o desenvolvimento histórico da previdência social, a imprensa influenciou no seus destino, especialmente na construção do mercado de previdência privada dos anos 90. Nesse momento, trabalha na redefinição de valores e na resignificação de conceitos, sobretudo o de cidadania.

 

2.1 Surgimento e desenvolvimento histórico da previdência social

A idéia de previdência social nasceu da necessidade de proteção dos indivíduos, a partir do sentimento de incerteza e insegurança quanto ao futuro. Segundo Zambom (1999), durante o período da sociedade rural, aproximadamente até século XVIII,  as inseguranças e preocupações com o amanhã agravavam-se, já que os camponeses tinham que administrar não apenas os problemas oriundos de mercados desfavoráveis, mas também, os problemas de colheitas ruins, intempéries, pragas, etc. Nesse período, a proteção dos camponeses dependia da solidariedade das famílias e dos interesses dos senhores feudais. Posteriormente, surgiram as Irmandades de Socorro Mútuos, visando auxiliar na proteção de velhos, órfãos, inválidos, viúvas e vítimas de acidentes, impossibilitados de trabalhar.

Com a expansão industrial, os problemas se diversificaram: problemas de saúde, acidentes de trabalho, condições insalubres de trabalho, desemprego e outros mostraram as condições de instabilidade do mercado de trabalho, que não oferecia proteção alguma aos seus trabalhadores.

Tendo em vista esse contexto de carência assistencial, durante os séculos XIV e XVII surgiram as primeiras manifestações a favor da implantação de um seguro social. Segundo Póvoas (1985), o movimento previdenciário tinha como objetivo a assistência social, já que as multidões viviam em condições sub-humanas. Nesse sentido, as primeiras manifestações previdenciárias não se deram na perspectiva de direito social de cidadania, contudo, na perspectiva de assistência social.  

Observamos que a ação dos sindicatos foi importante no processo de efetivação das leis previdenciárias, sobretudo na Alemanha, que em 1883 promulgou as primeiras leis sobre seguros sociais obrigatórios. Essas leis, que ficaram conhecidas como Leis de Bismarck, foram promulgadas através de uma mensagem imperial de Otto Bismarck. Segundo Póvoas (1895), a Lei de Bismarck é considerada o marco inicial da previdência social, porque consistiu na implantação de um seguro social baseado em saúde, acidentes de trabalho e invalidez, que incluía também envelhecimento. Segundo Zambom (1999) o bispo  de Mogúncia, da Alemanha, foi o primeiro a formular as exigências sociais da igreja católica e fomentou o debate sobre a necessidade de leis assistenciais, recebendo apoio imediato do movimento previdenciário e dos sindicatos.  

É importante esclarecer que, antes da lei de 1883, outras tentativas assistencialistas haviam surgido. As leis de proteção aos pobres – Poor Law - surgidas primeiramente na Escócia (1579) e depois na Inglaterra (1601), que  visavam dar albergue aos “necessitados”, bem como as leis fabris, surgidas na Inglaterra (1802), são exemplos das tentativas de implantação de leis assistenciais. Contudo, nenhuma obteve o alcance da lei de Bismarck. Essa, teve avanço no que se refere a perspectiva assistencialista, contudo, na sua essência  essa a idéia assistencialista permaneceu.

A origem das primeiras atividades de previdência no Brasil remonta aos primeiros anos da colonização. Naquele momento, os colonos buscaram seguir a tradição Portuguesa em termo de organização corporativa, instituindo o modelo de Misericórdia no Brasil. No ano de 1543 foi criada, por Brás Cubas, a primeira santa casa, denominada Santa Casa de Misericórdia de Santos, que criou  uma “caixa” ou “montepio” para seus empregados. Posteriormente, houve o surgimento de outras instituições de misericórdia durante o século XVI, tais como a Santa Casa de Misericórdia de Salvador, do Rio de Janeiro e a Santa Casa de São Paulo (1599), bem como os primeiros agrupamentos profissionais na segunda parte do século XVII. No século XIX houve um grande desenvolvimento de associações de auxílio mútuo profissionalizante, como a Sociedade Musical Beneficiente e a Sociedade Animadora da Corporação de Ouvires. Contudo, da mesma forma exposta acima, as atividades de previdência surgiram ligadas à assistência, que era praticada por entidades religiosas que mantinham hospitais e asilos .

Houve significativo crescimento dessas atividades com fins beneficientes, em especial, os montepios. A primeira iniciativa do Estado na criação de montepios nos remonta ao ano de 1795, época em que o príncipe regente, D. João, assinou o decreto que autorizou a criação do Plano de Beneficiência dos Órfãos e Viúvas dos Oficiais da Marinha, surgindo pela primeira vez montepios de iniciativa estatal no meio militar. Nessa época, já era significativa a presença de montepios privados nesse meio.

Durante o Brasil Império outros montepios de iniciativa estatal vão surgir. O montepio do exército (1827), montepio dos servidores do Estado - civis e militares - (1835), caixa de socorro para os trabalhadores das estradas de ferro do Estado (1888), montepio para empregados do correio (1889) e a caixa de pensão dos operários da imprensa nacional (1889).

Conforme o contexto acima de desenvolvimento das atividades previdenciárias, podemos afirmar que durante o Brasil-Colônia e no Brasil-Império conviveram instituições previdenciárias de caráter privado e público. As entidades de caráter privado eram divididas em duas espécies: entidades assistenciais e/ou religiosas, e entidades desenvolvidas no âmbito restrito às categorias profissionais. As entidades públicas eram voltadas exclusivamente para os funcionários do Estado, aos quais o Estado buscava oferecer proteção social.

Com a proclamação da República as questões sociais tiveram o mesmo tratamento que no período anterior. Durante a República Velha, os decretos que visaram medidas de proteção social foram voltados apenas para determinadas categorias de funcionalismo público, com a exclusão dos demais trabalhadores. Nesse momento, surgiu diversas Caixas Mútuas de Pensões e Pecúlios e de Montepios, Instituições Mutualistas e Caixas Beneficientes.

O ano de 1923 é considerado o marco da previdência social brasileira. A partir do projeto do deputado Elói Chaves, criou-se as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs). O Decreto nº 4.682 estipulou a criação obrigatória em cada companhia ferroviária do país de uma caixa de aposentadorias e pensões para os respectivos empregados das estradas de ferro. Segundo Menicucci (1994) essa data é considerada o grande marco da Previdência Social do Brasil, porque “as tentativas anteriores tiveram alcance muito limitado e poucas vezes foram efetivamente implantadas...” (Menicucci, 1994:.29). Entretanto, pelo Decreto de 1926, esse regime foi estendido a outras categorias profissionais, como portuários e marinheiros

Segundo Cohn (1981), pela Lei Elói Chaves o financiamento das CAPs era tripartide e a administração desses órgãos era feito por um colegiado composto por números iguais de representantes dos empregados e dos empregadores, excluindo-se, portanto, o Estado da gerência dessas instituições.

Sobre o papel do Estado no sistema previdenciário, Oliveira e Teixeira (1986) argumentam que na década de 20 a previdência social estava organizada na forma de instituição de natureza civil e privada, do ponto de vista da gestão. A presença do Estado se fazia apenas de maneira externa ao sistema, da mesma forma que agia com outras instituições de caráter privado. Dessa maneira, “a presença do poder público só era prevista na forma de um controle à distância, ou seja, como uma instância externa ao sistema administrativo, destinada exclusivamente à resolução de conflitos entre, por exemplo, a administração das Caixas e algum segurado.” (Oliveira e Teixeira, 1986: 31)

Na década de 30, durante o governo Vargas, foram criados os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), que abrangia as categorias profissionais. Tanto as CAPs como os IAPs eram mantidos pelo regime de capitalização, mas ao contrário das CAPs - que eram administradas por colegiado -, os institutos eram geridos pelo Estado.

Em 1960 foi instituída a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS). Segundo Cohn (1981), essa lei foi fundamental para a organização do sistema previdenciário, porque uniformizou as contribuições e as prestações dos diferentes institutos. Anterior à LOPS, cada instituto poderia cobrar um percentual diferente de contribuição, mas com a LOPS a “contribuição ficou estipulada em 8% do “salário-benefício” do empregado e igual soma de recursos do empregador e da União, respectivamente.” (Cohn, 1981:13)

A criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, simbolizou a unificação de todas as instituições previdenciárias existentes. Segundo Menicucci (1994), a criação do INPS aconteceu durante o Regime Militar, se inserindo, portanto, em um contexto de modernização e regulamentação do Estado sobre a sociedade. Naquele momento, o modelo de capitalização vigente foi substituído pelo modelo de repartição simples. Ocorreu, também, uma expansão dos serviços previdenciários.

 Sabemos que, desde sua criação, a legislação previdenciária ocupou-se especificamente dos trabalhadores urbanos, mas após a criação do INPS esses benefícios foram ampliados a outras categorias profissionais, tais como trabalhadores rurais, empregadas domésticas e trabalhadores autônomos.

Sobre o surgimento da previdência social, Oliveira e Teixeira (1986) sustentam que está ligado ao contexto de surgimento da massa trabalhadora urbana e da luta por reivindicações trabalhistas. Sustentam, ainda, que esse momento marca a ruptura com o liberalismo do Estado Oligárquico agrário, no qual praticamente inexistiam disposições relativas às questões sociais e trabalhistas, bem como ao surgimento de um Estado intervencionista, que buscava ceder às reivindicações trabalhistas visando evitar agitações políticas mais graves. “(....) são [as conquistas] o produto da pressão operária interna; reforçada pela ameaça que esta mesma classe colocava no ar com sua ação no plano internacional; e num contexto de início da crise da própria forma de dominação burguesa até então vigente no País. (Oliveira e Teixeira, 1986: 49)

Sobre o mesmo assunto, Santos (1979) considera que a aceitação da idéia de agrupamentos sociais como interlocutores no debate provocou “fissura na ordem jurídico-institucional laissez-fairiana, strictu sensu, ao admitir a legitimidade de demandas coletivas, antes que estritamente individuais” (Santos, 1979:20). Ou seja, com o aparecimento de um novo ator organizado no cenário político  - sindicato -, abria-se nova arena de conflito, e o Estado deveria, a partir de então, considerar suas reivindicações sociais e coletivas, bem como ouvir suas demandas. 

Contudo, se na sua origem a previdência social foi estabelecida para uma fração restrita da classe trabalhadora, durante seu desenvolvimento foi se estendendo para outras categorias ocupacionais, incorporando nos anos de 1970 os assalariados urbanos, o trabalhador rural, o trabalhador autônomo e o doméstico. Além disso, a previdência social começou a incorporar outros benefícios como a assistência médica, mas sem perder, contudo, sua característica assistencialista e sua preocupação especialmente com as classes populares.   

No próximo item, abordaremos a construção do mercado de previdência privada e o processo de redefinição da idéia de cidadania e direitos sociais. Apontaremos o papel da imprensa nesse processo.

 

2.3 Construção do mercado de previdência privada e redefinição de cidadania

Na década de 70 surge um novo ator no cenário previdenciário: a previdência privada. Com justificativa de  “modernização econômica”, e a criação de poupança interna para o país, o governo militar buscou oferecer uma forma de complemento e substituição a segurança social até então fornecida pelo Estado. Inspirado nos fundos de pensão norte-americanos, o governo militar regulou, em 1977, as atividades de previdência privada no Brasil, que passaram a ser oferecidas por seguradoras.

Segundo Menicucci (1994), através da legislação de 1977 o governo deixou claro que seu objetivo era eliminar gradativamente do mercado as entidades sem fins lucrativos, representada pelos tradicionais montepios, e abrir espaço para as entidades lucrativas, estimulando as fusões e incorporações. Menicucci argumenta que o Estado via na previdência privada um instrumento de captação de poupança, ou seja, que objetivava inserir o país na lógica de acumulação interna de capitais a partir da captação de recursos via previdência privada. A poupança gerada pelos fundos de previdência privada seria investida na economia do país, levando a melhores condições de vida para os trabalhadores.   

Na construção dessa idéia, o governo conta com uma forte aliada, a imprensa. Essa, divulgou as vantagens da previdência privada enquanto proteção para o trabalhador e enquanto geradora de poupança interna para o pais, redefinindo diariamente o conceito de cidadania e de direitos sociais.

Nesse sentido, o argumento sugerido nesse artigo é que o conceito de cidadania passa por certas redefinições e resignificações. Assim, cidadania para a ser considerada o consumo de previdência privada; a posse de direitos sociais passa a ser o acesso a um maior número possível de informações referentes ao mercado previdenciário. Divulgando dados sobre taxas de juros, nomes de empresas que trabalham no mercado e informando sobre os novos produtos lançados no mercado, entre outros, a imprensa se auto-define como fundamental no processo de inclusão social e como intermediária no exercício da cidadania. Nesse caso, a imprensa promove cidadania, quando aproxima o indivíduo do mercado.. “Todo cidadão deve ter um plano de previdência privada (....), quem tem planos de previdência colabora para a formação de poupança interna do país” (Revista Meu Dinheiro, 1999). Na mesma perspectiva, a idéia de direitos sociais é apresentada pela imprensa.

Realizamos coleta de dados nas revista Visão e Exame, buscando observar a influência da imprensa na criação e consolidação do mercado de previdência privada, que passa a ser considerado expressão de cidadania.

Em outubro de 1975 a revista Visão clama pela regulamentação da previdência privada e pela consolidação do modelo de previdência fechada. Argumenta que os “Pensions Funds” tem dado certo nos Estados Unidos e contribuído com a economia e melhorias na vida dos trabalhadores. Pela forma que o tema foi abordado, a imprensa “comprou” a idéia de superioridade dos fundos de pensão em relação aos montepios.

No ano de 1976 a revista Visão continuou a fomentar o debate sobre regulamentação da previdência privada e promover a defesa dos fundos de pensão. Com a matéria  “A regulamentação vem ai”, (05/1976), publica uma matéria sobre o II Simpósio Nacional de Previdência Privada, acontecido no Rio de Janeiro. Segundo a revista, nesse simpósio a expectativa de regulamentação da previdência foi de otimismo, e enfatizou a guerra entre montepios e seguradoras. Naquele momento, o presidente da ANAPP, Cononel Alcy Rezende, afirmou que, “previdência privada é caso de segurança nacional” (Visão/05/1976).

A partir do final de 1976, a discussão sobre a regulamentação e institucionalização da previdência privada se intensificou junto à opinião pública e também no Congresso, que nesse ano, introduziu o debate sobre a legislação previdenciária. Nesse período, o tema recebeu importância durante todas as semanas na imprensa, sendo que as revistas Visão e Exame adotaram uma perspectiva de necessidade urgente da regulamentação da previdência privada, instituição dos fundos de pensão e regularização dos montepios, que segundo esses órgãos, desde o final de 1975 estavam sendo criticados pela imprensa, que divulgou fraudes, irregularidades e falências dessas instituições. 

Em janeiro de 1977, Visão comemorou mais uma vez a vitória da experiência norte-americana com o modelo de fundos de pensão, e acrescentou que o Brasil deveria se inspirar nessa experiência.   “O sucesso foi tão rápido que os fundos de pensão, em pouco mais de 20 anos, já são um dos principais investidores na bolsa, já que congregam a maior parte dos trabalhadores assalariados americanos e  já são estudados no mundo inteiro.” (Visão/01/1977) 

Em fevereiro de 1977, a revista Exame abordou a possível regulamentação da previdência privada durante aquele ano. Acrescentou, ainda, que as empresas de seguros de vida são grandes interessadas na regulamentação, já que querem vender planos de previdência.

No mesmo mês a revista Visão trouxe uma matéria na qual comparou os montepios com os fundos de pensão americanos e concluiu que os montepios possuem mais desvantagens do que vantagens em relação aos fundos de pensão. A argumentação baseou-se em três pontos: os fundos de pensão são mais baratos do que os montepios; os montepios possuem alto período de carência; e os montepios não têm credibilidade junto aos consumidores.

Com a matéria “A chama da revolução social” (04/1977), a revista Visão chegou a relacionar os fundos de pensão norte-americanos com o socialismo. Segundo essa revista, o benefício proporcionado aos trabalhadores pela previdência privada aproxima a sociedade do socialismo. As matérias que trazem essa ideologia são inspiradas nas idéias de Peter Ducker, que defende que os fundos de pensão tem o papel  de criar condições de desenvolvimento econômico do país e dessa maneira, proporcionar melhores condições de vida aos trabalhadores. Nesse sentido, observamos mais uma vez o papel da imprensa na criação de idéias e na redefinição de conceitos. Nessa matéria, o conceito de socialismo é redefinido, assim como a idéia de cidadania e direitos sociais.     

No contexto exposto acima, com matérias enfatizando a superioridade dos fundos de pensão e planos de previdência privada - chegou até a comparar o modelo de previdência privada com a idéia de socialismo -, a imprensa não mediu esforços no debate sobre a regulamentação da previdência privada. Durante todo o período, vendeu a idéia da necessidade da regulamentação da previdência privada, criticou os montepios e pediu a consolidação dos fundos de pensão, considerados fundamentais na melhoria das condições de vida dos trabalhadores e da sua proteção social.

Para finalizar, observamos que na década de setenta, a imprensa iniciou uma série de reportagens sobre os fundos de pensão, numa perspectiva favorável ao seu desenvolvimento. A postura da imprensa foi representativa dos interesses do mercado de ações, assumido enfaticamente a defesa das aplicações das reservas dos fundos de pensão em ações. Para os setores que se expressavam através da imprensa, os  fundos de pensão pareciam resolver os problemas enfrentados em qualquer sociedade capitalista.

 

2.3 O mercado de previdência nos anos 90

Observamos o material veiculado pela imprensa nos anos noventa, encontramos o mercado de previdência privada com um patrimônio significativo e se legitimando, aos poucos, como fornecedor de proteção social. Nesse momento, a imprensa aborda a necessidade de uma reforma estrutural na previdência social e defende a passagem do modelo solidário de repartição para o modelo de capitalização.

O modelo de repartição - também chamado de sistema solidário - é aquele em que é recolhido, mensalmente, uma certa quantia do salário dos trabalhadores da ativa, o qual é usada para custear a aposentadoria dos inativos; Por regime de capitalização entendemos aquele no qual a contribuição é recolhida mensalmente dos salários dos trabalhadores e depositada em um fundo remunerado, que acumulará até a data da aposentadoria, quando o trabalhador passará a retirar mensalmente uma quantia.

Nesse debate, a imprensa enfatiza pleno exercício da cidadania no modelo de capitalização. Segundo setores da imprensa que defendem esse ponto de vista, no modelo de capitalização o indivíduo detém total autonomia sobre seu futuro. Ao contrário do modelo de repartição, no qual o indivíduo mantém uma relação de dependência intergeracional, nesse as decisões de quando se aposentar e quanto receber de aposentadoria são questões relacionadas a proteção  e seguridade que cabem somente ao indivíduo decidir.

 Dentro desse contexto, argumentamos que mais do que dependência, a forma como o modelo de repartição está constituído, possibilita a criação de solidariedade entre as gerações. O trabalhador da ativa contribui para a aposentadoria do inativo, que por sua vez, um dia contribuiu para a aposentadoria de alguém. Nesse sentido, o modelo de repartição facilita a criação de um laço de solidariedade entre jovens e velhos, que se estende, sim, numa relação de dependência.

Observamos que essa relação de dependência, que atualmente passa por redefinição e é associada ao negativo, já foi divulgada pela imprensa, em outros momentos e em outras lutas simbólicas como favorável. Isso mostra que a definição e redefinição de conceitos está diretamente relacionados a construção de uma realidade, que  deve ser apropriada aos interesses envolvidos.

Nesse sentido, é possível afirmar que o modelo de capitalização interrompe com a essa idéia de e solidariedade presente no modelo de repartição, pois apresenta preocupações de caráter individualistas, como a formação de um fundo de poupança ou de um pecúlio individual. A longo prazo, é possível que esse modelo tencione as relações entre jovens e velhos culminando em graves conflitos intrageracionais. Isso aconteceria porque o modelo de capitalização tende, futuramente, a provocar distorções consideráveis. Ou seja,  quando os fundos de previdência, feitos atualmente, forem resgatados pelos aposentados, teremos um quadro econômico no qual, dinheiro que poderia ser investido em emprego ou em salários para os trabalhadores da ativa, será direcionado para o pagamento de aposentadorias. Isso poderá provocar descontentamento por parte da população ativa, que mudará a forma como se relaciona com os velhos. Isso nos parece um problema sociológico interessante, para o qual devemos estar atentos e dispostos a reflexão.

Assim, considerando que a previdência social é a grande responsável pelo déficit das contas públicas do país, a imprensa comemora todas as reformas aprovadas no congresso e divulga o mercado de previdência privada, fazendo analogias com aquele existente nos Estados Unidos.  “Quem quiser receber mais, terá que optar por um fundo privado de aposentadoria, como acontece, sobretudo, nos Estados Unidos”( Isto É/11/1998). Com matérias intituladas “Aposentadoria à sua escolha”, “Escolha seu plano” e “Feliz aposentadoria”, divulga a falência da previdência oficial, e aponta o surgimento de  novos planos de previdência no mercado, entre eles o FAPI e o PGBL, que trazem incentivos de venda, como desconto no imposto de renda. A lógica argumentativa dessas matérias é vender a previdência privada como sinônimo de segurança, deslegitimando a previdência social como responsável por oferecer proteção social.

Nesse período, os jornais também dedicaram grande importância ao debate. O jornal Gazeta Mercantil (05/2001) enfocou o oeste paulista como grande concentrador de consumidores, perdendo apenas para as cidade de São Paulo e do Rio de Janeiro. O O Estado de São Paulo (25/10/1999) dedicou uma página ao debate. Nela, o então ministro da Previdência e Assistência Social, Waldeck Ornélas, afirmou que há um imenso espaço para o crescimento da previdência complementar no país. “Hoje, o patrimônio de toda a previdência privada, somando os recursos de fundo de pensão e os dos planos abertos, eqüivale a apenas 11% do PIB, sendo que, desse total, 10,3% correspondem aos recursos de fundos de pensão e somente 0,7% são provenientes de planos oferecidos no mercado” (Estado de São Paulo/25/10/1999). O ministro afirmou, ainda, que ampliar o patrimônio da previdência privada constitui a meta do governo. Para isso, tem trabalhado na elaboração de projetos, que visam consolidar o mercado.

Nesse mercado, que busca complementar e substituir a proteção do Estado, a classe média é considerada a consumidora potencial,. Por outro lado, a previdência social passa a assistir somente aos trabalhadores das classes populares, que não possui condições sócio-econômicas para buscar a proteção no mercado previdenciário. Assim, sofre o  estigma de instituição que fornece assistencialismo aos pobres e miseráveis. Esses, por sua vez,  também sofrem o estigma de serem protegidos pelo Estado, tal como analisado por Marshall.

 

4 Imprensa: poder e violência simbólica

A partir dos dados apresentados e analisados acima, podemos concluir que o mercado de previdência privada tem a imprensa como aliada na construção de sua imagem. Para isso, a imprensa tem abordado a falência irremediável da previdência social e redefinido o conceito de cidadania, que passa a eqüivaler ao consumo de planos de previdência privada.

Contudo, apresenta um discurso de urgência acerca da substituição do modelo de repartição pelo modelo de capitalização, bem como o fomento, por parte do governo, da previdência complementar. Essa, é  tida pela imprensa como a “esperança” na acumulação de poupança interna do pais e  no desenvolvimento econômico, cumprindo assim, importante papel social junto aos trabalhadores, especialmente na geração de empregos.  Nesse sentido, o mercado de previdência privada simboliza a possibilidade de segurança e de proteção, em substituição a assistência até então fornecida pelo Estado. 

A reflexão e análise que será apresentada sobre  a imprensa, será inspirada nos conceitos de poder e dominação e violência simbólica de Bourdieu, presentes no trabalho Les Sens Pratique (   ). Nesse trabalho, argumentando sobre lutas e conflitos simbólicos, que visam acumulação de capital cultural, Bourdieu desenvolve, dois tipos de dominação: personalizada e institucionalizada.

A primeira, predominante nas sociedades pré-capitalistas, é fundada nas relações pessoa-pessoa tendo como base a dependência e a solidariedade; nesse caso, segundo Bourdieu é necessário um trabalho cotidiano visando manter a dominação.

A dominação institucionalizada, típica das sociedades ditas modernas, é baseada em títulos e credenciais. Segundo Bourdieu, o lugar por excelência de produção/ reprodução da autoridade institucionalizada encontra-se na escola. Nesse ponto, Bourdieu nos remete a um discussão já apresentada em seu livro, A reprodução: o sistema de ensino permite a reprodução da cultura dominante, o que reforça a reprodução das relações de força. Dessa forma, a escola tem o papel de consagrar e perpetuar uma diferença social preexistente. Os títulos, por sua vez, autorizam os indivíduos a ocupar as posições no espaço social.

 

Por outro lado, a dominação institucionalizada pressupõe uma dominação mais indireta e impessoal, baseada na expertise e nos títulos, frutos da posse de capital cultural. Nesse caso, é a escola que se assegura do monopólio da violência simbólica legítima, contribuindo para reprodução da ordem social a permanência das relações de dominação. Nesse sentido, é possível afirmar que a violência simbólica age de forma diferenciada, considerando o tipo de dominação exercida.

Podemos concluir que, a capacidade da imprensa em criar uma crença, relaciona-se a posse de capital simbólico que essa mantém. No sentido de Bourdieu, resultado de um conjunto de lutas e investimentos anteriores,  a imprensa acumulou capital simbólico, que a faz reconhecida e legítima para divulgar, analisar ou defender um ponto de vista junto à sociedade. Exerce, dessa maneira, certa dominação simbólica, quando redefine e resignifica o conceito de cidadania. “A dominação simbólica apoia-se no desconhecimento, portanto no reconhecimento, dos princípios em nome dos quais ela se exerce”  (Bourdieu, 1996:168). Nesse sentido, a dominação é simbólica porque existe uma cumplicidade entre imprensa e sociedade, que a legitima em seus atos. 

No sentido das formas de dominação expostas acima – pessoal e institucionalizada – a  imprensa exerce dominação institucionalizada, já que as pessoas que trabalham na criação e divulgação da informação devem ser legitimados pelo sistema escolar para exercer tal função, ou seja, a dominação exercida pela imprensa, baseia-se nos títulos e na expertise, não depende, portanto, de um trabalho cotidiano para manter a dominação, tal como acontece na dominação personalizada.  

A tipologia de dominação construída por Bourdieu, nos parece de grande valia para compreensão do processo da violência simbólica. Segundo Bourdieu, a violência simbólica (que constitui o trabalho de produção de uma crença, visando criar relação natural de submissão e obediência) acontece de forma invisível, dissimulada, aberta e deve contar com o trabalho da alquimia simbólica para se transfigurar.

No caso da imprensa, a violência simbólica acontece quando essa faz um recorte da realidade, o qual se torna aceito como único; da mesma forma, a violência simbólica acontece, ainda, quando a imprensa redefine valores e conceitos, ou mesmo quando os reitera. No caso analisado nesse artigo, a imprensa abordou o tema de forma a redefinir cidadania  como o acesso a planos de previdência privada e redefiniu direitos sociais como o acesso à informações sobre os planos. Ou seja, a imprensa comprou a idéia de substituição do modelo de repartição para  o modelo de  capitalização e divulgou intensamente essa idéia, buscando criar a descrença na previdência social e a previdência privada como alternativa à proteção social, até então fornecida pelo Estado. Nesse sentido, a imprensa redefine valores e dá novos significados ao conceito de cidadania. Nesse contexto, a previdência privada passa a ser vista como o instrumento de captação de poupança interna do país, que será investido no seu desenvolvimento econômico e social; Por outro lado, a previdência social é redefinida como incapaz de fornecer o mínimo de segurança social. Assim, a imprensa estimula as pessoas a buscarem seus direitos sociais de seguridade junto as empresas privadas de previdência privada.  

 

Quando influencia nos destinos da previdência social, a imprensa mostra grande eficácia Simbólica (Bourdieu, 1996)[2] no que se refere à capacidade de influenciar a criação de determinada realidade, ou, nas palavras de Bourdieu, na criação da doxa. Mostra ainda, grande poder simbólico, pois conta com a cumplicidade daqueles a quem exerce a dominação.

 

 

Considerações Finais

A partir da análise da passagem da previdência social para previdência privada, apresentada no decorrer desse artigo, observamos que, nesse contexto de reforma da previdência social e construção do mercado previdenciário, o conceito de cidadania passa por redefinições e resignificações.

O conceito de cidadania é associado ao consumo de previdência privada, bem como as idéias de inclusão social, participação, direitos sociais, entre outros. O mercado de previdência se torna o grande responsável pela inclusão social dos trabalhadores, pela melhoria na qualidade de vida dos brasileiros e pelo desenvolvimento econômico e social so país, sobretudo no que se refere a geração de empregos.

Da forma como a imprensa tem divulgado o mercado de previdência privada, esse  tem sido considerado à única alternativa viável à crise da previdência social. Assim, o mercado de previdência privada se torna o responsável por oferecer segurança e proteção aos trabalhadores, substituindo o Estado na tarefa de seguridade social, a qual não consegue mais responder.   

   ne ; divulgdo  o exercício da cidadania passa a ser considerado o consumo de planos de previdência privada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

________.Economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. Tradução de Sérgio Miceli. São Paulo: Edusp, 1997.

 

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COHN, Amélia. Previdência social e processo político no Brasil. São Paulo:  Moderna, 1981.

 

JARDIM, Maria C. O mercado das previdências: fatore sócio-culturais na criação de mercado. (Dissertação de mestrado). Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção, Universidade Federal de São Carlos.

 

________. Análise dos Fundos de Pensão: sindicatos, governo e empresa. Projeto de Doutorado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Socias, Universidade Federal de São Carlos, 2003.

 

LEOPOLDI, Maria. Entre a solidariedade e o risco: história do seguro privado no Brasil. Rio de Janeiro: Getúlio Vargas, 1998.

 

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades. Auto-retrato da classe média:  hierarquia de “consumo”e consumo em São Paulo, Rio de Janeiro: Revista Dados, v. 41 n. 2, 1998.

 

 

PÓVOAS, Manuel.  Seguro e Previdência. São Paulo: Green Forest do Brasil, 2000.

 

________. Previdência privada: planos empresariais. Rio de Janeiro: Fundação Escola Nacional de Seguros, 1991.

 

________. Previdência privada: filosofia, fundamentos técnicos e conceituação jurídica. Rio de Janeiro: Fundação Escola Nacional de Seguros, 1985.

 

PRATS, C. Manual de previdência social e acidentes de trabalho: São Paulo: Atlas, 1971. 

 

 

 

SANTOS, Wanderley. Cidadania e justiça - a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979.

 



[1] Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

e-mail: majardim@yahoo.com.br. 

[2] O conceito de eficácia simbólica deve ser entendido nesse artigo como a capacidade da imprensa em  criar uma crença, um mito. Para saber mais sobre esse conceito de Bourdieu, ler A economia das trocas linguísticas, editora Edusp, 1996, capítulo A linguagem autorizada (pags. 85-96)